Eram 20h de uma segunda-feira de inverno. A engenheira carioca Patricia
estava abraçada à filha, Deborah, de 8 meses, quando o bebê começou a se
remexer em frenesi. Inconsciente, agitava os bracinhos e revirava os
olhos ininterruptamente, enquanto perdia o comando da respiração. “O
rosto se contorcia para os lados, ela tremia no meu colo. Até que ficou
desacordada, com o lábio roxo”, relembra a mãe. Do apartamento
confortável em Ipanema, ela e o pai de Deborah apressaram um taxista
para chegar ao hospital mais próximo, com a criança desmaiada nos
braços. Patricia se desesperou, tinha certeza de que a filha estava
morrendo. No pronto-socorro, apesar de os exames apontarem normalidade,
ela ouviu da boca do médico: “Prepare-se: isso é só a ponta de um
iceberg”. E, a partir dali, sem diagnóstico fechado, Deborah teve crises
diárias. Muitas de seis horas de duração. Outras de 12 horas. E algumas
de até 24 horas – durante os 20 anos seguintes.
Com Caíque foi aos 5 anos de idade. Saudável e alegre, brincava no
escorregador da escola quando caiu do brinquedo. Um pouco de sangue na
boca, nenhum dente ou membro quebrado. A queda não preocupou a
professora nem impressionou os coleguinhas. Mesmo assim, sua mãe, a
manicure Jeane, levou o menino ao hospital público mais próximo de casa,
na comunidade da Rocinha, para se certificar de que tudo corria bem. E
corria, segundo os médicos. Até que, na manhã seguinte, Caíque perdeu os
sentidos e começou a se debater no chão com o olhar perdido. Tornou-se
rotina: convulsões a toda hora. O menino desaprendeu a falar e andar
enquanto os remédios se acumularam: quase 300 gotas de cinco rótulos
diferentes a cada 24 horas, aparentemente, sem efeito. Até o ano
passado, depois de seis anos da primeira crise, o menino somava uma
média de 40 convulsões por dia. “Sua vida se resumia a dois estados:
dopado ou convulsionando”, conta a mãe.
Pouco mais de 20 anos e 8 quilômetros separam a história da mãe de Deborah, Patricia Rosa, 55, da mãe de Caíque, Jeane da Silva Santos, 37. Patricia chegou a pagar o equivalente a um carro (cerca de R$ 40 mil) por ano no tratamento da filha. Jeane também nunca mediu esforços: mesmo com a renda mensal de R$ 1.500 da família, conseguiu acesso aos melhores médicos da área – ora desembolsando o dinheiro suado, ora com a ajuda dos próprios profissionais. Nunca ninguém soube dizer o que Caíque tinha.
A história dessas mães se cruza agora, na descoberta de um tratamento barato, natural e eficaz para a doença dos filhos: o cultivo caseiro de maconha para extração de um óleo medicinal capaz de atenuar a epilepsia. Deborah, 23 anos, reduziu as 40 convulsões mensais para oito; Caíque, 13, recuperou a fala e os movimentos e passa o mês inteiro sem uma única crise, graças ao remédio.
Pouco mais de 20 anos e 8 quilômetros separam a história da mãe de Deborah, Patricia Rosa, 55, da mãe de Caíque, Jeane da Silva Santos, 37. Patricia chegou a pagar o equivalente a um carro (cerca de R$ 40 mil) por ano no tratamento da filha. Jeane também nunca mediu esforços: mesmo com a renda mensal de R$ 1.500 da família, conseguiu acesso aos melhores médicos da área – ora desembolsando o dinheiro suado, ora com a ajuda dos próprios profissionais. Nunca ninguém soube dizer o que Caíque tinha.
A história dessas mães se cruza agora, na descoberta de um tratamento barato, natural e eficaz para a doença dos filhos: o cultivo caseiro de maconha para extração de um óleo medicinal capaz de atenuar a epilepsia. Deborah, 23 anos, reduziu as 40 convulsões mensais para oito; Caíque, 13, recuperou a fala e os movimentos e passa o mês inteiro sem uma única crise, graças ao remédio.
Unidas pelo vegetal Patricia cuida sozinha de seus pés
de maconha. Controla os níveis de luz e umidade das mudas, um vaso de 1
metro de altura e outros dois menores, dispostos quase ao pé de sua
cama. “Até meu pai, de quase 90 anos, chegou a dizer que chamaria a
polícia. Era perigoso deixar as plantas à vista.” Mas o risco de ser
presa não existe mais. Em setembro, a engenheira eletrônica conseguiu um
habeas corpus para o plantio. E agora ela mesma extrai o óleo que serve
de remédio para a filha. Primeiro, desidrata as flores de maconha, que
mistura a gelo seco num filtro próprio. Depois, junta óleo de coco e
armazena o produto num vidrinho, na prateleira de remédios da casa. Todo
dia, Deborah toma 1 ml na hora do almoço.
Já Jeane, por morar numa área de risco como a Rocinha, conta com as
doações da advogada carioca Margarete Brito, 45, a primeira brasileira a
ter autorização judicial para plantar maconha em casa, um ano atrás
A filha de Margarete, Sofia, de 8 anos, sofre com uma mutação que atinge
o gene CDKL5 (doença homônima com pouco mais de 1.200 casos
diagnosticados no mundo), compromete o desenvolvimento neurológico e
desencadeia um sem-fim de convulsões. A primeira aconteceu quando ela
tinha 35 dias de vida. A combinação de remédios e anticonvulsionantes
não surtia efeitos – assim como acontecia com os filhos de Patricia e
Jeane. Até que, numa noite, pesquisando na internet, o marido de
Margarete deparou com uma americana portadora da mesma síndrome e
usuária do óleo de maconha, que havia promovido melhoras animadoras para
ela.
Em 2013, a família começou a importar – ilegalmente – o produto. “Não se
tratava só da minha filha, mas de uma substância considerada inofensiva
no exterior. Tive certeza – e esperança – de que seria impossível um
promotor acusar de tráfico internacional uma mãe na minha situação”, diz
Margarete. As convulsões de Sofia diminuíram para cerca de 15 por mês, e
ela, que àquela altura já havia mobilizado outras centenas de mães, foi
corresponsável, em 2015, pela conquista de uma nova regulamentação da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o uso medicinal
da maconha. Desde então, é possível importar o óleo. A luta de Margarete
e das outras mães foi documentada no longa Ilegal (2014), dirigido por
Tarso Araujo e Raphael Erichsen.
Só que não demorou para a importação se mostrar impraticável. “Uma
ampola para 15 dias de tratamento da Sofia custava US$ 500”, conta
Margarete. Em outubro de 2016, ela entrou com outra ação na Justiça e,
no mês seguinte, recebeu o salvo-conduto para começar a plantar a
matéria-prima do remédio da filha. Hoje, além dela e de Patricia, apenas
três famílias conseguiram autorização no Brasil para cultivar maconha
em casa a fim de tratar dos filhos doentes. Fora eles, quatro adultos e
uma ONG paraibana que trata de pacientes com problemas neurológicos
também ganharam o aval.
Cultura e cultivo “Há décadas a literatura médica
aponta os efeitos positivos da substância canabidiol presente na
maconha”, afirma o neuropediatra Eduardo Faveret, referência no assunto
que, junto com Margarete, coordena uma associação de familiares (95%
mães) de pacientes que fazem uso medicinal da erva, a Apepi. “Além de
ser antioxidante e anti-inflamatório, funciona como protetor neural em
casos de asfixia cerebral e epilepsia”, explica.
Só que, ao longo dos anos, os embargos impostos pela proibição da maconha no mundo rarearam as pesquisas científicas. Reservada ao uso recreativo, a erva passou por manipulações genéticas para aumentar seu THC, a substância responsável pelo “barato” e a leseira, deixando muitas subespécies com pouco teor de canabidiol, que tem outro efeito: reduz a ansiedade e a sincronicidade dos neurônios – aquilo que acontece no sistema nervoso numa convulsão.
Só que, ao longo dos anos, os embargos impostos pela proibição da maconha no mundo rarearam as pesquisas científicas. Reservada ao uso recreativo, a erva passou por manipulações genéticas para aumentar seu THC, a substância responsável pelo “barato” e a leseira, deixando muitas subespécies com pouco teor de canabidiol, que tem outro efeito: reduz a ansiedade e a sincronicidade dos neurônios – aquilo que acontece no sistema nervoso numa convulsão.
No mercado clandestino e orquestrado pelo tráfico, o cultivo das plantas
passou a se submeter ao alto risco de contaminação por agrotóxicos,
metais pesados e coliformes fecais. Foi esse receio o grande motivador
da bancária paulista Maria Aparecida de Carvalho, 50, a Cidinha, quando
abriu mão do óleo pronto que dava à filha – e que importava ilegalmente,
a US$ 500 a dose – para cobrar da Justiça um habeas corpus que
autorizasse seu cultivo de maconha. Portadora de síndrome de Dravet, uma
doença rara e incurável que se caracteriza por convulsões agressivas,
déficit cognitivo e risco de morte de pelo menos 15% dos portadores
antes da adolescência, Clarian, de 14 anos, vivia à base de
antiepiléticos. Ainda assim, uma das crises a levou a uma parada
cardiorrespiratória, depois de uma convulsão de quase duas horas.
Três anos atrás, logo que começou o tratamento com o óleo, a duração
dessas crises diminuiu para alguns minutos, e o intervalo entre elas
passou de três dias para 11. A família mergulhou em estudos sobre o
tema. Uniu-se a um grupo de médicos, advogados e cultivadores ativistas e
foi ao Chile fazer um curso de extração de óleo com a fundação de mães
MamáCultiva. Também teve aulas na Associação Brasileira para Cannabis
(AbraCannabis) e aprendeu manejos de cultivo no Growroom, um espaço de
convivência e redução de danos para usuários de Cannabis, onde aprendeu a
importância da germinação por clones (que garantem a carga genética das
plantas) e não por sementes (que podem render alterações a cada nova
muda de maconha).
Com a administração do óleo orgânico, feito em casa, desde o início
deste ano, a vida da menina se transformou, e sua personalidade
desabrochou: Clarian tem temperamento forte, é despachada e
comunicativa; adora pular corda com as amigas, jogar basquete, e sabe
administrar as próprias crises quando ocorrem, já que são leves e não
demoram mais que 1 minuto. “A meta de uma mãe é sempre a cura. A
Cannabis é o alívio que nunca tivemos”, diz Cidinha, que ainda se
emociona com os avanços da filha. A sensação de vitória a fez virar
ativista – e perder amigos no Facebook, por “apologia às drogas”. Ela,
que afirma nunca sequer ter experimentado um baseado, ficou abalada no
início. Mas a melhora da filha fortaleceu cada vez mais a convicção de
que fazia a coisa certa. Estando offline, seus vizinhos não reclamaram
da plantação de maconha no jardim da família – afinal, era visível: de
uma hora para outra, cessaram as cenas da mãe desesperada com a filha
nos braços, protagonizando convulsões tão violentas que pareciam
aproximá-la da morte.
Cidinha puxou até os cunhados para a luta. E a família se reuniu nas
edições da Marcha da Maconha. Na primeira delas, em 2014, Clarian não
conseguia andar nem um quarteirão; em 2015, aguentou firme até
convulsionar no meio do trajeto; em 2016, acompanhou quase o percurso
todo; até que, neste ano, andou a Avenida Paulista toda e ainda empurrou
a cadeira de rodas de uma coleguinha. “Em três anos, vi evoluções que
minha filha nunca tinha tido em 11”, diz Cidinha, que hoje fala com
propriedade sobre o tema, do teor científico ao plantio, e toca a
Cultive, uma associação de maconha medicinal que fundou em dezembro
passado, a fim de reunir famílias (na grande maioria, mães) de pacientes
interessados no autocultivo.
O representante comercial Fabio, 51, seu marido e pai de Clarian, também é engajado na causa. É ele quem cuida das 15 mudas de harle-tsu, a cepa de maconha conhecida por conter mais canabidiol que THC. Acorda às 5h só para vaporizar água nas plantas. Tira à mão os insetos de cima delas e sempre lhes direciona palavras de carinho. “São como minhas filhas, porque salvaram a vida da Clarian”, diz, emocionado.
O representante comercial Fabio, 51, seu marido e pai de Clarian, também é engajado na causa. É ele quem cuida das 15 mudas de harle-tsu, a cepa de maconha conhecida por conter mais canabidiol que THC. Acorda às 5h só para vaporizar água nas plantas. Tira à mão os insetos de cima delas e sempre lhes direciona palavras de carinho. “São como minhas filhas, porque salvaram a vida da Clarian”, diz, emocionado.
Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o ato de cultivar o
remédio dos filhos por si só já tem um efeito terapêutico importante. “É
evidente que se dificulte tanto a regulamentação dessa prática. Afinal,
é caseira, artesanal, barata. O que a indústria ganha com isso?”,
questiona. “Em contrapartida, os caríssimos remédios que existem na
praça para tratar da epilepsia funcionam como um tiro de canhão à caça
de uma mosca: expõe-se o cérebro a produtos tão fortes que eles mesmos
podem piorar o quadro do paciente; algo que nunca aconteceria sob efeito
dos canabinoides – se exagerar na dose do óleo da maconha, no máximo,
seu filho vai dormir. Isso, sim, é matar mosca com arma antimosca.”
Para a Anvisa, entretanto, a questão é mais complexa.De acordo com o
órgão, é impossível se manter a qualidade do óleo e as quantidades
adequadas de THC e canabidiol quando produzido em domicílio. Segundo o
diretor-presidente, Jarbas Barbosa Silva Júnior, a liberação do
autocultivo cabe à Justiça brasileira, e não à agência reguladora.
“Nossa expectativa é de que, no início de 2018, tenhamos uma
regulamentação para facilitar a pesquisa científica e organizar a
produção de medicamentos apenas para empresas interessadas.” Até agora,
três indústrias sondaram a possibilidade de comercializar o óleo no
país.
A toxicologista Virgínia Martins Carvalho, professora da Faculdade de
Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, antecipou-se. Desde o
início do ano, ela coordena o Farmacannabis, projeto da UFRJ que
analisa a composição química exata das mudas de maconha usadas no
autocultivo. “Por enquanto, observo que o óleo caseiro tem uma
capacidade de extração de canabidiol muito inferior à do importado, pelo
fato de ser artesanal”, diz.
Por esse motivo, a enfermeira aposentada Margarida Lagane, 65, trocou o
remédio caseiro pelo óleo importado no tratamento de seu filho, que
sofre de encefalopatia devido a um problema no parto. Aos 32 anos, João
Pedro teve dores estomacais e alucinações com óleos que continham
quantidade significativa de THC. Margarida, então, conseguiu uma liminar
para que o estado do Rio de Janeiro pagasse os US$ 500 suficientes para
quase três meses de uso durante um ano de tratamento, a vencer em junho
de 2018.
Margarida agora briga na Justiça pelo habeas corpus que lhe permitirá
cultivar a planta em casa. “Não para meu filho, mas para os filhos de
outras mulheres. A ideia é aumentar e fortalecer cada vez mais essa rede
de mães. Juntas conseguimos até o impossível”, diz ela, ao lado de João
Pedro, que, aos poucos, pronuncia palavras e recupera os movimentos dos
quais a combinação de crises constantes e remédios fortes lhe privou.
Até o momento, as famílias aguardam uma audiência pública para julgar a
descriminalização de plantio, cultivo, colheita, transporte, prescrição
médica e porte da maconha para fins medicinais, que deverá ser feita
pelo plenário do STF em breve. Que seja o começo do fim da lavoura
arcaica da desinformação e dos preconceitos que germinam do tema.
A erva e o tempo
10-3 mil A.C. - A origem da Cannabis se confunde com a da agricultura. Foi dos primeiros cultivos com foco têxtil e medicamentoso – da tradicional ayurveda indiana à farmácia dos gregos e árabes.
1484 - O papa Inocêncio VIII proíbe a maconha, usada
por curandeiros perseguidos na Inquisição. Mas as fibras da erva ainda
dão origem a tecidos resistentes de roupas e velas de navios.
1600 - Durante a expansão marítima do século,
navegadores levam sementes de Cannabis para plantar mundo afora – foi a
Inglaterra que transformou a Jamaica na capital da erva.
1800 - Os franceses chegam à África e Napoleão proíbe
seu exército de usar maconha, acusada de atuar como um antídoto
pacificador que “causava a perda do espirito da guerra".
1808 - A maconha chega ao Brasil com os escravos africanos. No início, seu cultivo foi estimulado pela Coroa real. Dizem que a rainha Carlota Joaquina adorava chá de Cannabis.
1830 - A legislação do município do Rio de Janeiro
começa a punir o uso da erva – nossa primeira proibição a respeito. Mais
tarde, nos anos 20, o Brasil adota leis federais antimaconha.
1843 - Em fevereiro é publicado, na Inglaterra, o
primeiro artigo científico do Ocidente sobre o uso medicinal da Cannabis
para tratar convulsões.
1963 - O químico israelense Raphael Mechoulam consegue
driblar os cerca de 400 componentes ativos da maconha e isolar em
laboratório o canabidiol e o THC.
2015 - Passa a vigorar uma nova regulamentação da
Anvisa para o uso da maconha: permite-se a importação do óleo medicinal,
mediante apresentação de documentos.
2016 - A Justiça
brasileira emite o primeiro habeas corpus autorizando uma mãe do Rio de
Janeiro a cultivar em casa mudas de maconha, que servirão como remédio
para a filha doente.
Marie Claire



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