Carol tinha apenas 25 dias de vida quando teve a primeira crise de
epilepsia. Durante anos, nenhum médico soube dar um diagnóstico para o
que acontecia com a menina. As crises chegavam a 60 por dia. A rotina se
reverteu há cerca de dois anos, quando Carol começou a usar
regularmente um óleo de canabidiol – uma das 113 substâncias químicas
canabinoides encontradas na Cannabis sativa, a maconha, que chega a compor 40% da planta.
Neste sábado (5), Carol completou uma milha histórica: em 120 dias,
teve apenas uma crise. No meio de mais uma edição da Marcha da Maconha
de Porto Alegre, evento tradicional no mundo todo pedindo a legalização
do consumo da droga, a família dela liderava o primeiro Bloco da Maconha Terapêutica.
Na cadeira de rodas enfeitada de balões roxos e verdes, cores em
referência à epilepsia e à maconha, ela lutava com o sono e sorria.
“Pedindo a legalização para a recreação também estamos unindo forças.
Todos os países que estão legalizando, estão liberando total. Nós temos
tanta bebida, cigarro, por que essa luta? Na parte medicinal, existe
toda uma indústria farmacêutica que não quer a liberação, porque está
ganhando dinheiro”, diz a mãe Liane Maria Pereira, professora.
A história da família de Carol é um resumo da luta de quem tenta usar tratamento a base de cannabis no Brasil.um pouco Uma página no Facebook ajuda
a contar um pouco do cotidiano da menina. A primeira vez em que Liane
tentou conseguir o canabidiol para a filha foi em 2014, logo após
assistir uma reportagem na televisão sobre a história do pai que
conseguiu o medicamento para a filha. O primeiro caso no Brasil. Mesmo
depois de arrumar toda a documentação, porém, a tentativa de Liane
morreu na mesa de um médico que ficou reticente em seguir em frente com o
pedido de autorização do uso.
“Ainda hoje são poucos os médicos que aceitam. Nós temos apoio total
da nossa médica, mas é uma corrida no Brasil todo de pessoas que
precisam para encontrar médicos que aceitem [fazer a solicitação para
uso]”, conta ela.
A médica atual da família foi a primeira pessoa que conseguiu
explicar as crises de Carol. Em 2015, foi ela quem identificou que a
menina sofria de Síndrome de Dravet, uma doença rara que se manifesta
com crises de epilepsia graves, que não são facilmente controladas com
os fármacos disponíveis tradicionalmente. Segundo Liane, a doença gera
ainda atraso cognitivo, escoliose na coluna e é degenerativa. A
recomendação da médica foi que não perdessem mais tempo e começassem
imediatamente o tratamento com canabidiol.
O medicamento usado por Carol é uma espécie de óleo, que pode ser
administrado por via oral ou por sonda. Carol precisa de três gotas por
dia. Em um mês, ela consome R$ 3 mil em medicação. Assim, mesmo depois
de conseguir a autorização do Estado, a família só contou com apoio
público para custear o tratamento por seis meses. O restante do tempo o
dinheiro veio de vaquinhas virtuais, ajuda de amigos, rifas, empréstimos
bancários. Até que Liane viu que não poderia mais continuar se mantendo
assim.
No ano passado, ela buscou o bloco terapêutico da Marcha da Maconha
de São Paulo, para tentar encontrar uma solução. Descobriu que o
medicamento comprado clandestinamente sairia muito mais barato, com
efeito melhor. “A gente teve as duas visões, do medicamento importado e
do clandestino. A Carol fez um boom cognitivo, ela melhorou muito, muito”.
Há alguns meses, a família também passou a cultivar maconha em casa,
para conseguir produzir o próprio medicamento. Agora, Liane aguarda a
decisão de um habeas corpus para ter autorização para plantio e
regularizar a situação. Até este ano, o Brasil concedeu apenas 12
autorizações do tipo. Se a família de Carol conseguir, seria a primeira
do Rio Grande do Sul. Segundo Liane, a forma invertida, sendo “melhor
pedir perdão antes de permissão”, é a única de conseguir legalizar a
plantação de maconha por aqui.
Antes de se juntar à luta pela legalização da maconha, Liane conta
que tinha preconceitos com a droga como a grande maioria das pessoas.
Hoje, porém, até a avó de Carol, Maria Alice Pereira, 72 anos, frequenta
as Marchas. Ela reconhece que mudou sua visão graças a mudança que
percebeu na neta. Carol passou da rotina de passar dias a fio dentro de
hospitais para ver uma criança que gosta de brincar, cantar, se divertir
com os programas na televisão e que leva uma vida feliz. Antes, ela
diz, “considerava maconheiro como a ralé da sociedade”.
“Quando surgiu a oportunidade de experimentar a maconha, a gente se
desconstrói. Se desconstrói e vai a fundo, porque a gente dava remédios,
rezava para que ela não tivesse mais crises e não tinha mais o que
fazer. Tu só tem que te desconstruir e aprovar. Ela tem muita coisa
agora que ela não tinha”, conta a avó
Para a ex-deputada Luciana Genro (Psol), os danos à saúde causados
pela maconha são próximos de outras drogas legalizadas, como o álcool e o
cigarro. Ela defende ainda que as experiências internacionais de
legalização mostram que, mesmo em casos que há adição à droga, ela ainda
precisa ser tratada como caso de saúde, não de segurança pública.
“Não existe nenhuma razão para a maconha ser parte do comércio ilegal
de drogas. Acho que essa pauta vai avançar institucionalmente a medida
que houver maior conscientização da população. Os partidos tradicionais
respondem à uma lógica eleitoral, não à lógica real das necessidades da
população. A discussão sobre legalização é uma necessidade que ainda não
está incorporada pela população, por uma ideologia que associa droga à
doença, à violência, sem compreender que é o tráfico e a ilegalidade que
provocam todos esses males”, diz ela.
Nos cartazes da Marcha de 2018, os manifestantes defendiam que a
proibição serve para alimentar a narrativa de “guerra às drogas” e as
políticas de Estado que vem com ela. Em uma das faixas, com o perfil da
vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro, no dia 14 de
março, perguntavam: “Quantos mais tem que morrer pra essa guerra
acabar?”.
Enquanto não há resposta institucional, Liane segue pela filha. “É
uma luta, porque a gente cresce sabendo que é uma droga, que não pode
chegar perto, mas tu vê o outro lado. Hoje não vejo outro caminho, é
qualidade de vida para a minha filha”.
Sul 21





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