A vida
do neurobiólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Renato
Malcher virou de ponta-cabeça quando seu filho – que parecia não se
encaixar no mundo, à deriva dentro de si – foi diagnosticado com
autismo. Garantir um presente e um futuro seguros para a criança
tornou-se missão na vida do pesquisador.
A trajetória de estudos levou Malcher ao canabidiol, um dos princípios ativos da Cannabis sativa,
conhecida popularmente como maconha. Na substância, o pesquisador
encontrou respostas para as próprias inquietações e uma das fontes de
alívio para os sintomas do filho.
Prestes a finalizar um artigo científico sobre os efeitos do extrato de
maconha em casos de pacientes diagnosticados com algum tipo de autismo,
Malcher conversou com o G1 na última sexta (9).
No bate-papo, ele falou sobre as descobertas científicas mais recentes
sobre os canabinoides – nome designado às substâncias encontradas na
maconha e que ativam receptores específicos no cérebro humano – e a
importância deles no tratamento de diversos transtornos e doenças.
Na semana passada, o neurobiólogo esteve em Israel para participar de
um encontro com o cientista Raphael Mechoulam – descobridor do princípio
ativo da maconha. Na ocasião, ele também conheceu Adi Aran e David
Meire, outros pesquisadores que vem apresentando estudos contundentes
sobre os canabinoides.
Em que pé estamos?
A prescrição dos medicamentos à base de maconha foi liberada pelo Conselho Federal de Medicina
em outubro de 2014, ano em que a discussão floresceu no país. Em 2017, o
tema avançou, e atualmente 3 mil pessoas conseguem importar remédios
que utilizam a planta em sua composição para fins medicinais.
Por causa da burocracia e do alto custo dessa medicação, no Distrito
Federal pacientes precisaram acionar a Justiça para que a Secretaria de
Saúde disponibilizasse os remédios. Atualmente, apenas 13 famílias
recebem o benefício. Segundo a pasta, “o medicamento é disponibilizado
individualmente, atendendo diretamente a demanda realizada”. Na prática,
significa que não há estoque.
Também em 2017, o Tribunal de Justiça do DF autorizou que uma mãe plante maconha para tratar a doença neurológica da filha,
de 16 anos. Sem o uso regular de dois princípios ativos presentes na
planta – o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabidiol (THC) –, a
adolescente chegava a ter 40 convulsões seguidas em uma única manhã.
Confira a entrevista com o neurobiólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Renato Malcher:
G1: Desde 1843, as propriedades anticonvulsivantes da Cannabis são conhecidas pela ciência. Por que ainda há tanta desconfiança?
Renato Malcher: O
primeiro contato do mundo ocidental com o uso medicinal da Cannabis
ocorreu com um irlandês que estava vivendo na Índia. Ele usou uma
tintura haxixe e álcool para tratar uma menina de 40 dias que estava
morrendo, por causa de crises convulsivas, e salvou a vida dessa
criança.
Esse caso é muito parecido com outros que começaram a ser divulgados,
recentemente, nos Estados Unidos e no Brasil. Uma menina com a síndrome
de Dravet nos EUA, e outra menina, aqui de Brasília, com a síndrome
CDKL5, começaram a usar um óleo extraído de um tipo de Cannabis sativa rica em canabidiol. Ambos os transtornos causam simultaneamente convulsões e autismo.
Nas duas, as convulsões caíram de devastadoras centenas, por semana,
para três ou menos. E, assim como em outros relatos sobre crianças
autistas, o uso de canabidiol causou também melhoras extraordinárias de
sintomas como ataques de agressividade e autoflagelação, hiperatividade e
falta de contato visual.
Há mais ou menos 40 anos, dois pesquisadores, um israelense e um
brasileiro, colaboraram em uma série de artigos sobre o canabidiol
purificado. Os experimentos foram feitos no início da década de 1980, em
São Paulo, pelo grupo do Elisaldo Carlini, que, recentemente, tem sido acusado pela polícia de apologia ao crime.
Junto com o Raphael Mechoulam, de Israel, eles mostraram que o
canabidiol puro pode ser usado para tratar epilepsia – mesmo a epilepsia
que resiste a outros medicamentos.
G1:
Certo. Mas por que mesmo com esses avanços, algumas famílias ainda se
sentem receosas de submeterem os filhos a tratamentos que incluem
medicamento à base da maconha?
Malcher: Existia
um estigma muito grande em relação ao uso da Cannabis por causa do
abuso, que pode, sim, ocorrer. Esse estigma, no entanto, é muito
exagerado. Sempre foi. Nunca houve nada que justificasse um tratamento
diferente entre a cannabis e o álcool, por exemplo. As duas substâncias
alteram o funcionamento da mente e, portanto, devem ser regulamentadas.
A proibição e a punição de quem vende ou usa a cannabis cria, por si
só, uma série de problemas. Se o cara é alcoólatra, ele vai ao médico e
diz “eu sou alcoólatra, eu preciso de ajuda”. Ele não é punido por causa
disso, ele não é preso, ele não é encarcerado, não é chamado de
vagabundo, de fraco, de pecador, de financiador do crime. Quem sofre o
mesmo problema por usar Cannabis – o que é muito mais raro – é tratado
como criminoso.
Como essa lei faz muito pouco sentido, do ponto de vista científico,
existe uma propaganda para mantê-la que exagera os efeitos negativos da
Cannabis. O abuso pode gerar problemas, mas nenhum deles justifica essa
inquisição.
G1: Pelo que a gente já sabe, até agora, quais sintomas e quais doenças podem ser tratadas com os derivados da Cannabis?
Malcher: Basicamente,
hoje, qualquer doença pode ser beneficiada pelo uso de canabinoides.
Isso porque o sistema de canabinoides é, justamente, o principal
orquestrador na condução de um organismo em estado de luta, doença,
inflamação, para um organismo no estado da normalidade.
O nosso próprio corpo produz canabinoides. Ou seja, a maconha produz
substâncias que imitam as do nosso organismo e são importantes para
gerar bem-estar, para diminuir o sofrimento e a dor.
Esse sistema de canabinoides, por exemplo, consegue desligar enjoo,
inflamação e diminui o excesso de atividade neuronal. Além disso, ajuda a
impedir que o câncer produza metástases. Pode, ainda, ajudar o cérebro a
impedir que reações neurodegenerativas, como acontece no Alzheimer e no
Parkinson, progridam.
Mas existe toda aquela informação de que o uso da maconha destrói neurônios, quebra sinapses. Como conciliar isso?
Malcher: Os
canabinoides protegem o cérebro contra danos causados, por exemplo, por
inflamação ou por isquemia [diminuição ou suspensão da irrigação
sanguínea]. Ao contrário do mito de que os canabinoides destroem o
cérebro, na verdade, eles protegem os neurônios.
O potencial terapêutico dos canabinoides tanto diminui os sintomas, em
uma função paliativa, como restabelece condições orgânicas para o
sistema funcionar. Pode levar, não necessariamente à cura, mas a um
tratamento estável dos sintomas e das causas.
G1:
O senhor comentou que os canabinoides podem ajudar a diminuir a dor.
Essas substâncias, então, poderiam reduzir o abuso de analgésicos?
Malcher: Os
locais que aprovaram os canabinoides para uso medicinal tiveram redução
nas mortes por overdose de analgésicos de farmácia, sobretudo os
opioides. No Colorado [estado norte-americano], a queda foi de 25%.
As pessoas de lá passaram a usar os canabinoides para esse fim,
substâncias que não têm efeitos colaterais e não causam morte como os
opioides podem causar. Não existe overdose de canabinoide.
G1:
Os dois princípios ativos mais estudados da maconha são o canabidiol
(CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). Como eles atuam no nosso cérebro?
Malcher: Hoje
em dia, a gente sabe que a Cannabis produz uma quantidade muito grande
de substâncias que juntas, e em proporções diferentes, podem gerar
resultados diferentes no organismo.
O canabidiol é um dos 80 canabinoides – substâncias que ativam
receptores específicos no cérebro e que existem na maconha. O canabidiol
não é psicoativo, ou seja, não causa euforia e não dá "noia".
Ele é responsável por elevar os canabinoides endógenos [produzidos pelo
nosso próprio organismo]. São eles que ajudam a reduzir o excesso de
ativação dos neurônios – evitando convulsões, ansiedade e psicose. Daí,
ajudam a tratar epilepsia e alguns casos de autismo, por exemplo.
O THC também é usado para combater dor, enjoos e casos de epilepsia. No
entanto, dependendo da quantidade da substância, ele pode causar a
"nóia" do uso recreativo da maconha, e um efeito oposto ao desejado.
De uma maneira geral, o THC e o canabidiol, sozinhos ou combinados, são
extremamente versáteis e úteis para vários tipos de aplicação. Em todos
esses tipos de aplicação, a gente sabe que é importante prestar atenção
na proporção entre eles.
:
Quando alguém fuma um cigarro de maconha, acaba ingerindo canabinoides
como o CBD e o THC, mas também ingere outras substâncias. Ao todo,
quantas substâncias são ingeridas?
Malcher: São
mais de 500 substâncias. Algumas são parecidas entre si, que são essas
chamadas de canabinoides. Você pode produzir plantar muito variadas em
composição e ajustar, definir uma combinação ideal para cada tratamento.
A gente tem aí uma estrada de inovação revolucionária. Eu costumo dizer
que a medicina canabinoide é a mais antiga revolução da medicina.
G1:
A Justiça do DF autorizou, em outubro, que uma mãe plante maconha para
tratar a doença da filha. Na sua visão, o plantio doméstico da Cannabis
representa a solução para esses pacientes?
Malcher: O
mundo ideal é aquele em que as pessoas têm acesso aos recursos e às
informações. Se a pessoa planta em casa e tem acesso ao recurso, ela
precisa saber exatamente o que tem naquela planta.
Quando a planta é usada para dor ou enjoo em adultos, não é necessário
saber exatamente o que tem ali. Durante o uso – seja o extrato, o
vaporizador ou fumando –, o próprio paciente vai sentir o momento em que
a dor passou, o tremor do Parkinson passou, o enjoo passou.
Se você trata um autista, principalmente um não verbal, você precisa
ajustar uma dose, e isso ainda tem sido um mistério. Então, o mundo
ideal é aquele em que você sabe a combinação exata que funciona para o
seu filho e pode pedir, no meio da madrugada, em uma farmácia. E não,
depender da própria produção.
O que aconteceu com essa família foi uma solução imediata em um
contexto, mas não é o ideal. O ideal é a regulamentação, que as pessoas
sejam instruídas. Para tratamento do câncer, da esquizofrenia, da
psicose, do autismo, da epilepsia, e muitas outras coisas, você precisa
ter algo diferenciado [da produção doméstica].
A Anvisa permite prescrição e importação de medicamentos e produtos com
CBD e THC, mas muitos brasileiros ainda enfrentam dificuldades para
obter os remédios. Por que isso ocorre?
Malcher: Hoje,
temos quase 3 mil pacientes no Brasil com autorização da Anvisa. Essas
autorizações são emitidas em caráter excepcional, mediante pedido médico
e um termo em que o profissional e o paciente se responsabilizam pelo
uso da medicação.
Além disso, nenhuma pessoa jurídica é autorizada a produzir. Então,
você pode importar de uma empresa no exterior, mas nenhum brasileiro
pode produzir o mesmo óleo para essas pessoas com autorização de uso.
Isso, obviamente, desfavorece as empresas do Brasil interessadas em
produzir, como desfavorece o público, que precisa pagar muito caro.
G1: Quanto, por exemplo, custa importar um remédio à base de cannabis?
Malcher: Meu filho está usando um dos mais baratos e eu estou gastando mais ou menos R$ 1,7 mil por mês.
G1:
Seu filho é autista, e você contou que teve depressão quando o
diagnóstico dele surgiu. Essas pesquisas e as descobertas recentes sobre
o canabidiol ajudaram você a enfrentar esse caso, dentro de casa?
Malcher:
Quando você tem um filho autista e acredita que tem de fazer algo, você
pode ver isso tanto como uma doença crônica, quanto como uma missão.
Enquanto a missão não tem resultados, ela é uma doença.
Na medida em que essa missão passa a produzir resultados, ela vira uma
cura. Ainda estamos muito longe de ter resultados que possam eliminar
todas as preocupações que eu tenho com o presente e o futuro do meu
filho.
Hoje, graças ao uso do canabidiol, eu sei que a minha vida, a vida da
mãe do meu filho e a vida do meu filho estão muito melhores do que
estariam se eu e outros cientistas não tivéssemos lutado para usar o
canabidiol no tratamento de autistas, por exemplo.
G1

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